Sunday, December 24, 2006

Nesse curso entendi que a vida não tece apenas uma teia de perdas mas nos proporciona uma sucessão de ganhos. O equilíbrio da balança depende muito do que soubermos e quisermos enxergar (...)
(...) sou dos que acreditam que a felicidade é possível, que o amor é possível, que não existe só desencontro e traição, mas ternura, amizade, compaixão, ética e delicadeza. Penso que no curso de nossa existência precisamos aprender essa desacreditada coisa chamada "ser feliz".
Na arte como nas relações humanas, que incluem os diversos laços amorosos, nadamos contra a correnteza. Tentamos o impossível: a fusão total não existe, o partilhamento completo é inexeqüível. O essencial nem pode ser compartilhado: é descoberta e susto, glória ou danação de cada um -solitariamente. Porém numa conversa ou num silêncio, num olhar, num gesto de amor como numa obra de arte, pode-se abrir uma fresta. (...)
(...) Espiarão juntos, artista e seu espectador ou seu leitor - como dois amantes. E assim, rasgando joelhos e mãos, a gente afinal vai.
Pois viver deveria ser - até o último pensamento e o derradeiro olhar -transformar-se.
Somos autores de boa parte de nossas escolhas e omissões, audácia ou acomodação, nossa esperança e fraternidade ou nossa desconfiança. Sobretudo, devemos resolver como empregamos e saboreamos nosso tempo, que é afinal sempre o tempo presente. Mas somos inocentes das fatalidades e dos acasos brutais que nos roubam amores, pessoas, saúde, emprego, segurança, ideais. De modo que minha perspectiva do ser humano, de mim mesma, é tão contraditória quanto, instigantemente, somos. Somos transição, somos processo. E isso nos perturba. O fluxo de dias e anos, décadas, serve para crescer e acumular, não só perder e limitar. Dessa perspectiva nos tornaremos senhores, não servos. Pessoas, não pequenos animais atordoados que correm sem saber ao certo por quê.
Fruto de enganos ou de amor, nasço de minha própria contradição.
O contorno da boca, a forma da mão, o jeito de andar
(sonhos e temores incluídos) virão desses que me formaram.
Mas o que eu traçar no espelho há de se armar também segundo o meu desejo.
Terei meu par de asas cujo vôo se levanta desses que me dão a sombra onde eu cresço
- como, debaixo da árvore, um caule e sua flor.
O mundo não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui forma, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem. É uma idéia assustadora: vivemos segundo o nosso ponto de vista, com ele sobrevivemos ou naufragamos. Explodimos ou congelamos conforme nossa abertura ou exclusão em relação ao mundo.
Em plena maturidade sinto em mim a menina assombrada com a beleza da chuva que chega sobre as árvores num jardim de muitas décadas atrás. Tudo aquilo é para sempre meu, ainda que as pessoas amadas partam, que a casa seja vendida, que eu já não seja aquela. Para isso precisei abrir em mim um espaço onde abrigar as coisas positivas, e desejei que fosse maior do que o local onde inevitavelmente eu armazenaria as ruins. Os contornos desse eu que me propuseram precisaram ser ampliados segundo o meu jeito, para que, dentro de todas as minhas limitações, eu pudesse me abrir e acolher a vida em constante transformação. Boa parte do tempo andamos meio às cegas, avançando por erro e tentativa, tateando entre os desafios de cada dia. Sobre essa terra firme ou areia traiçoeira teremos de erguer a nossa casa pessoal feita em parte desses materiais brutos. Nem tudo pode ser programado. Os cálculos têm resultados imprevistos. Misturamos em nós possibilidade de sonhar e necessidade de rastejar, medo e fervor. Talvez seja utopia, mas se eu não deixar que se embote a minha sensibilidade, quando envelhecer, em vez de estar ressequida eu terei chegado ao máximo exercício de meus afetos.
Nascemos com toda a carga de nossa genética física e psíquica. Mas não somos apenas isso. Somos em parte resultado do que foram nossos pais. Mas não somos apenas isso. A sociedade em que vivemos tem muitos olhos e braços, que nos vigiam e interferem em nossa realidade. Um deles chama-se opinião alheia. Não a de algumas pessoas amadas e respeitadas, mas essa entidade informe, onipresente, quase onipotente, do "o que eles vão pensar". Sem pedir licença, entra em nossa casa e nossa consciência, limitando, podando.
Mas quem nos dará sugestões, quem nos pode ajudar - se somos também pré-formados, pré-fabricados e condicionados? Quem vai destramar esses fios, onde começamos nós e termina a influência de tantos? Por isso somos buscantes, inquietos, naturalmente insatisfeitos. Não condenados: somos livres para muitas decisões. A partir de quando pude ter algum discernimento, o que fiz para continuar sendo - ou melhorando - isto que agora sou? Como fui me tornando um indivíduo que cultiva liberdade mas também respeito e ternura pelo outro? Como me posicionei em relação a essa entidade anônima e poderosa que se chama os outros, que pode ser amável e cruel?
Nossa visão imprecisa se define mais com o amadurecimento e a reflexão. Forma-se o que chamamos personalidade, opinião própria, atitude. De mil maneiras mostraremos o lugar que pretendemos ocupar: pela escolha das nossas roupas, da profissão, do parceiro, de tudo. Sobretudo no inconsciente eu me comportarei conforme a confiança, a suspeita, o entusiasmo ou o ceticismo que me caracterizam.
Auto-estima é o que me vem à mente. Visão positiva, não cor-de-rosa ou irreal, significando confiança. Capacidade de alegria, busca de felicidade, crenças. O que de melhor posso fazer, como ser inteiro e feliz, dentro de minhas possibilidades - que geralmente extrapolam aquilo em que acreditamos ou nos fazem crer.
Tem a ver com superar o confortável espírito de rebanho: formar e sustentar opiniões próprias. Não com viver desdenhosamente à margem, mas enfrentar o risco de algum isolamento. Não vender a alma a qualquer preço por qualquer companhia, mas selecionar os amados eleitos, os amigos leais, os mestres e modelos sensatos. Até mesmo a profissão mais adequada, a que nos dê mais prazer, se é que podemos fazer essa escolha: temos de pegar qualquer atividade quando se trata de sobreviver. Falar é fácil... Eu sei. Mudanças produzem ansiedade. Tentar sair do emprego em que me pagam mal ou estou infeliz; enfrentar pai ou mãe opressivos; romper um relacionamento amoroso que me diminui ou esmaga; evitar um convívio em que um se anula para que o outro tripudie, num processo de servidão que gera ressentimento e culpa. Sair do estabelecido e habitual, mesmo ruim, é sempre perturbador. O desejo de ser mais livre é forte, o medo de sair da situação conhecida, por pior que ela seja, pode ser maior ainda. Para nos reorganizarmos precisamos nos desmontar, refazer esse enigma nosso e descobrir qual é, afinal, o projeto de cada um de nós.
Nossa maneira de ver e viver reflete - e repete - aquela com que fomos vistos quando éramos somente reflexo no espelho, ou vamos formando uma postura própria com todo o esforço e dor que isso possa exigir? Sendo contraditórios, somamos hesitação e medo com audácia e fervor. Podemos nos esconder no quarto escuro ou virar a cara para o sol, alternar as duas posturas, gastar e consumir, amealhar e multiplicar. Somos tudo isso. Nossa anistia ou nossa aniquilação. Não é só culpa dos outros se ficamos truncados. Em cada estágio podemos colocar algum traço, algum ponto, alguma cor no projeto de quem pretendemos ser. Podemos ser obrigados a usar disfarces, mas no centro de nós mesmos ressoa o nome que nos dermos: a nossa chancela.
Perdas e Ganhos
LYA LUFT